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Somos todos apresentadores de tv

Outrora as pessoas tinham sua profissão e bastava a competência de seu exercício. Fosse no caso dos ofícios mais reservados e silenciosos, como o trabalho dos montadores de componentes eletrônicos e dos contadores, fosse no dos mais exibicionistas, como o dos artistas, vendedores e advogados de tribunal, trabalhava-se e pronto. Mesmo no caso dos que lidam com Arte ou vendas, com exceção dos profissionais de televisão, nem todos precisavam atrair a atenção de sua audiência com números surpreendentes, estrepolia e barulho; a atenção se voltava para o resultado do ofício em si. Além disso, o trabalho se dava no domínio dos instrumentos técnicos e intelectuais do lavor, sem a necessidade de habilidades tecnológicas.

No século XXI, e sobretudo com o exercício profissional durante a pandemia, o trabalho de muita gente passou para dentro do aparelho pelo qual escrevo estas mal traçadas linhas. Tudo é ante, para e através do computador. Como dar aulas, por exemplo. Lecionar não tem mais a ver com estar com pessoas conversando em roda, em fileira, em pé, sentados ou se mexendo, olhos nos olhos. No caso das plataformas de “reuniões” virtuais, diante de uma tela acesa, agora se trata de implorar para que alunas e alunos abram suas câmeras e fazer malabarismos para que acompanhem o debate (sem a certeza de que estejam mesmo acompanhando). É preciso um tempo específico e uma energia que sai da construção do conhecimento coletivo para a excitação da atenção de curta duração. O conhecimento vem depois, e que venha rápido. Além disso, o domínio técnico de alguns programas de informática é obrigatório.

Todos nos tornamos apresentadores de televisão. Não basta ser professor, é preciso ser o Silvio Santos. Bem mais do que isso, na verdade. Porque os apresentadores de tv profissionais têm por trás uma equipe de produção, câmeras, diretores, editores, iluminadores, técnicos de switcher. Como aquele music clown que sincroniza seu trompete com os guizos nos pés e o bumbo, o prato e a buzina nas costas, temos que ser, a um só tempo, nós mesmos os técnicos desse micro estúdio que se tornou o PC. Docentes se tornaram one man tv host ou completas women show. Temos que dar conta do áudio, da luz, da exibição das imagens, correr o teleprompter, inserir caracteres, acompanhar o chat, soltar a música, compartilhar os links e formulários de frequência… e dar aula. Ensinar no século XXI se tornou apresentar um programa de tv no qual você faz tudo sozinho.

Em relação a assistir ao trabalho dos artistas, também se tornou participar de uma gincana de exibições públicas de aceite. E não se trata de uma crítica: é apenas uma constatação sobre o que se tornou o mercado de bens culturais, é disso que o artista vive, não tem jeito, eu entendo e tento tomar parte na brincadeira.

Os amigos, antigamente, me pediam para ir ver seus trabalhos. Manifestávamos nossa amizade ou apreço estético indo a um vernissage, a um lançamento de livro. Hoje, me requisitam a seguir suas contas nas redes sociais. Dar um like, responder a um quiz, seguir o canal do YouTube substituiu a compra do ingresso, a presença na noite de autógrafos. Em alguns casos, parece (pelo menos, parece) que pouco importa se você gostou ou não ou se foi afetado pelo trabalho. Pior, às vezes, não parece interessar nem se você assistiu a obra ou leu o texto: o que vale é clicar no joia da mãozinha. “Dá um joia aí!” ou “Tecla no sininho de notificação” são os mantras entoados na abertura de todas as peças. Tal qual as fórmulas de apelo à esmola recitadas pelos jograis e atores de rua ao finalizarem suas performances, na Idade Média, as obras de arte de nosso século se iniciam ou findam com a súplica por uma moedinha na caneca.

 

Foto: Österreicheische Nationalbibliothek (Unsplash)

 

 

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