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[CRÔNICA] Um povinho sem cultura

“Professora, eu adoro essa aula mas é que às vezes dá uma preguiça, uma vontade de dormir… Igual ciências, mas pelo menos Ciências a gente usa fora daqui…” E foi com esse soco no estômago que eu comecei meu primeiro dia de estágio.

A terça-feira de calor se acinzentou de poeira e dúvida no meio de Capim Macio. “Professora, eu não vou fazer essa coisa de besta!”. Fernando (nome fictício), de 12 anos, estava certo. Só sendo muito besta pra persistir nessa feitura de peças e linhas e tintas sem saber aonde elas vão lhe levar, sem a certeza do lugar de importância daquilo na sua vida. Fernando, assim como eu e você que me lê, foi criado num mundo de preto no branco, onde a arte não gira a roda da fortuna.

Situando-os na situação: De terça à quinta, das 13:00 às 17:20 eu sou “Tia Alice”, minha versão saia-longa-blusa-de-seda-universitária que pesquisa educação em artes numa escola da rede pública. Uma semi-professora. Me empacoto e vou pro fundinho de uma sala colorida, calorenta e que tem cheiro de Toddynho, pra entender – da maneira mais hardcore & oldschool – o que é ser professor no Brasil, mas no fim das contas, meus caros, só entendo que não há alguém no mundo que entenda porra alguma. Aluno, diretor, pais e mestres: tá todo mundo confuso no mesmo barco.

Por que que quanto mais velhos ficam, menos aulas de artes eles têm? Por que enquanto aprendem “assuntos úteis”, eles não aprendem a amar ao próximo também? Por que só se prepara as crianças para passarem de ano e depois no ENEM? Por que é obrigatório terminar a faculdade, entrar no mercado de trabalho e ganhar muito dinheiro? Por que as crianças desde cedo aprendem que, pra serem felizes, eles têm que ganhar muito dinheiro? Por que eles são ensinados a escolherem qualquer profissão, mas ser artista nem pensar, de jeito maneira, de jeito nenhum, na-na-ni-na-não? Por que um professor não pode mais guiar os alunos a pensarem e terem voz? Uma sociedade que não é educada sabendo da importância da sua própria cultura não é, ao mesmo tempo, oprimido e algoz?

Tá tudo errado. Tá tudo tão errado que, dentre todo meu conhecimento linguístico, não consigo tecer nenhum outro adjetivo além do lamento repetitivo. Tá tudo muito, muito errado.

Aquele ditado de que “só quando você se distancia do problema, passa a entendê-lo” talvez seja o grande culpado desses equívocos todos: a gente sai da escola e vai pra tão longe desse mundinho que foi nosso durante toda vida, que esquece o fato de que a culpa é tão nossa quanto do governador ladrão de merenda, do prefeito omisso, do mendigo analfabeto jogado na esquina. É provável também que esse “AFF” dito involuntariamente quando lembramos dos tempos de colégio seja consequência desse tudo-que-está-errado-desde-sempre, assim, num looping infinito de descaso.

A educação é “a base de tudo” e é também a maior causadora dos nossos cânceres: o discurso cheio de preconceito de classes, de gênero, de raça, de sexualidade, o golpe de estado, a memória seletiva, o jeitinho brasileiro e – irrefutavelmente – a farinha pouca e o meu pirão primeiro.

Nessa terça-feira, caro leitor, eu venho aqui cronicar minhas duvidas acerca até de mim mesma, que resisto enquanto posso num país que olha pros seus artistas cuspindo-lhes a cara (é tanto edital que nunca se paga…). Escrevo só pra dizer que ando cheia de medo de encarar de pertinho alunos que não poderão mais ouvir a opinião do professor em sala de aula se a PL 01/2015 for aprovada. Redijo aqui, muito segura, essa minha insegurança em ser Brasil-sil-sil num país pós-apocalíptico sem Ministério da Cultura ou Ministério da Educação que me represente. O artista é sempre o elo mais fraco, o primeiro pescoço a correr riscos, a arte faz pensar e ameaça os poderosos, por isso estamos sempre correndo perigo. Somos hoje o povinho sem cultura de quem falavam os brancos da janela dos apês enquanto batiam o inox reluzente das panelas? Por falar nisso, aonde estão eles e suas camisetas da CBF amarelas?

O pretérito é imperfeito, não existe predicado que subverta, o tempo verbal não passa nem com a bexiga taboca, não há plural na pátria amada, o sujeito é ficha suja, não há naquele presidente minha imagem de primeira pessoa do singular. Não há negro, nem mulher, nem criança também por lá.

“Professora, terminei!”

Fernando guardou o Pippos pela metade na bolsa do Ben 10 e me invocou entregando um desenho do Goku.

“Tia Alice, o que você vai ser quando crescer?”

Hoje eu só aqui divago, pra devagarinho não deprimir. Eu não sei, Fernando, eu não sei. Você me perdoa se a tia te disser que anda triste, com preguiça, querendo dormir?

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