Nair Pires Fernandez. Minha avó. Filha de caboclos de Catanduva e Sorocaba. Se dizia bisneta de uma índia, caçada a laço por seu bisavô, que horror! Tinha a pele marrom, o olho muito levemente puxadinho. Caipira na gramática e no olhar. Pesava mais de cem quilos, baixinha, peituda. Abraçava forte, com proteção. Quando ela morreu, aos 91 anos, fomos à sua humilde quitinete ver o que caberia a cada um.
A primeira coisa que eu quis foi o único livro que ela tinha, um de culinária, Dona Benta – Comer Bem. Entendi porque minha mãe se tornou professora de arte culinária. Por ela, vim a saber que o livro tinha sido ganho em sua infância, numa promoção de um tal Café Jardim: quem juntasse 20 embalagens do pó poderia trocá-las por um copinho de vidro ou pelo livro. Como minha avó já tivesse mais de um daquele copinho, ela optou pela publicação. Elas tomaram uns 10 quilos de café para juntar os cupons e foram trocar na venda de um senhor que torrava o grão e vendia da sua janela, no final da rua.
O livro, mais do que desbotado pelo tempo, já estava meio dourado, com a lombada a desmanchar. A capa, originalmente branca, mostra a Dona Benta do Sítio do Pica Pau Amarelo, de vestido xadrez e avental branco, orgulhosa diante de uma mesa com tigela, jarro e um rolo de abrir massa, apontando a Pedrinho um bolo coberto de chantilly, encimado por um morango.
Deixei para abrir o livro quando chegasse na minha casa, depois daquela triste visita de abertura de casa de gente que morreu. Na primeira das páginas carcomidas e manchadas de gordura, li: “Este livro pertence à infra assinanda Nair P. F. Ganhei de presente da Companhia Jardim no dia 30 de maio do anno de 1948”. Estremeci. Primeiro, pela caligrafia tão caprichada da minha avó, com aqueles arabescos góticos nas maiúsculas de suas iniciais, feitas com caneta tinteiro e ainda em ortografia antiga, grafando ano com dois enes (a reforma ortográfica de 1943 já tinha abolido as consoantes duplas, mas acho que ela ainda escrevia como tinha aprendido na escola). Tendo estudado só até o quarto ano, tinha tanto zelo nos detalhes da escrita. Depois, pela antiguidade do objeto, talvez fosse o mais velho daquele apartamento. Me comovi também porque era 2008, estávamos em maio, ela tinha acabado de morrer… e o livro fazia 60 anos.
Mandei restaurar a encadernação. Ele consertado, quis logo me meter a testar algumas de suas receitas. Embora eu já tivesse topado com aquela capa em outros lugares, não tinha noção de que as receitas da Dona Benta eram um clássico literário da culinária popular brasileira. Publicado pela primeira vez em 1940, numa jogada de marketing, foi uma parceria entre Monteiro Lobato e a Editora Nacional, no esteio do sucesso da figura matriarcal do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Com o tempo, se tornou uma bíblia das donas de casa, pois ensina, em linguagem quase oral, o bê-á-bá da cozinha, desde como utilizar os utensílios, os pesos, as medidas, as guarnições, molhos, temperos, tempos de cozimento, até a como matar um peru! “Pouco antes de matar o peru, dê-lhe, às colheradas, um bom copo de caninha e quando ele ficar bem bêbedo, caído, mate-o, cortando-lhe o pescoço, mais ou menos no meio (…)”.
A edição de dona Nair é a 34ª e vi no reverso da última página que foi impresso na Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais em maio mesmo, portanto, poucos dias antes de vovó fazer suas anotações na folha de rosto. Fui pesquisar a data da morte de Monteiro Lobato, foi em julho daquele mesmo ano…
Fiz questão de deixá-lo um tempo sobre a estante da minha cozinha, como uma decoração. Arrisquei fazer carne assada de panela, sopa de legumes, creme de milho… Revi o livro dia desses. Já não está na minha cozinha, por motivos de preservação. Agora o folheei, gostosamente, lembrando, no cheiro de página velha, do aroma da comida dela. O livro ensina bolinho de chuva, vó! Mas bolinho igual ao seu nunca mais comi.
Diretor teatral e professor do Departamento de Artes da UFRN. Falador e desembestado, adora Shakespeare, Cultura Popular e divagar sobre qualquer coisa entre o vento, o mar e as estrelas.