Acordo de madrugada. Levanto, acendo a luz, faço chá, vou à garagem olhar a nesga de céu, procurar uma estrela de Belém. É o primeiro natal que vou passar em Natal. E a primeira vez em que não estou sentindo o natal. O natal, na verdade, é a única época do ano em que me permito fruir o clichê: a bola vermelha na árvore, as bolhas de Coca-Cola, as saudações de afeto, o cheiro de panetone, e da fritura de rabanada de minha mãe… gosto de tudo. Negar o clichê é bastante fácil. Ressignificar os estereótipos à luz do zeitgeist sempre me pareceu um jogo mais desafiador.
Há quem leia hipocrisia na apressada amabilidade que desponta nas pessoas nessa época do ano, nas saudações gratuitas que se distribuem, nos desejos de boa sorte, beijos, abraços, como se por uma semana a bondade estivesse autorizada. Nunca vi assim. Desde que descobri a maldade humana, em pequeno, prefiro que exista no ano, ao menos, esse tempinho para umas férias forçadas da ruindade.
Estranhei também até agora quem acha triste o natal. Para mim, foi uma festa, de costume, alegre, talvez porque meus natais de infância tenham sido felizes, talvez porque minha mãe cozinhe bem, talvez porque quem me ensinou a montar o presépio já tenha se apagado, talvez porque seja tudo tão lugar-comum que não haja surpresa nem susto no natal e por isso eu consiga relaxar. E depois nunca pensei muito sobre o sentido do natal, na verdade, apenas vivi. Mas a pandemia este ano me negou todo o seu clichê e minha mãe fritará suas rabanadas a três mil quilômetros sem mim. Por isso não estou sabendo em minha língua o figo roxo derretendo, os cravos furando a pele do tender, as piadas estratosféricas do meu cunhado… sem esse som, sem esse gosto, não estou conseguindo sentir o natal.
Mas, se olho diante de mim, tem o marzão dessa cidade linda, o perfume da maresia que posso adivinhar, a brisa da noite dissolvendo insuportável calor e tudo mais que a madrugada de insônia e chá pode botar para dentro da minha sala. Como entristecer num lugar lindo desse? Como anuviar um natal que só de gozo e otimismo sobreviveu? Mas aqui, na insônia úmida, assistindo às luzes piscarem na minha árvore, estreio um natal longe da minha família e talvez comece a sentir o que realmente ele é. A escuridão da noite aumenta, o chá começa a amargar, lembro da multidão de mortes da covid, já não estranho a tristeza natalina.
Porque, no fundo, sempre soube que esse clichê todo a que me refiro é burguês. E que o natal não é esse feriado de Hollywood com neve, renas, uma canção do Bing Crosby e um duende finlandês. Tudo isso compõe a minha memória comprida de Sessão da Tarde. Mas sei que o natal mesmo acontece é debaixo do monumento à Independência, na Praça Sete de Setembro, Cidade Alta, pelos moradores que na estátua habitam. O bebê palestino, clandestino e excluído, renasce nas manjedouras de embalagem alimentícia de papelão, nas marquises do centro da cidade, diariamente. É belo e grave pensar nesse estado do natal, e é para ele que eu acendo as minhas velas
Diretor teatral e professor do Departamento de Artes da UFRN. Falador e desembestado, adora Shakespeare, Cultura Popular e divagar sobre qualquer coisa entre o vento, o mar e as estrelas.