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[CRÔNICA] Barbara

É significativo que Barbara Heliodora tenha morrido justamente durante a semana em que eu prestava concurso no Departamento de Artes da UFRN. Barbara era uma professora e ensaísta lúcida, crítica, rigorosa… e detestada por muitos. Detestada porque mal compreendida. E eu sempre me identifiquei com os incompreendidos, com aqueles que confundem os desavisados. Soube da morte dela pela tv do quarto número 35 da Pousada Manga Rosa, de frente à praia de Ponta Negra, quase no Morro do Careca. Durante o concurso e pela primeira vez na cidade, me dei ao pequeno luxo de me hospedar numa boa pousada porque sabia que os mimos e confortos e um bom café-da-manhã e um bom chuveiro e estar de frente para o mar carregariam minhas energias, me dando paz e força para enfrentar o certame. Deus sabe o sacrifício que foi pagar pela pousada naquele momento, somado à passagem para Natal, mas deu certo. Passei no concurso, virei potiguar e agora estou aqui, a escrever este texto.
De volta à São Paulo, encontrei o cartão magnético do quarto 35 dentro da mochila. Sem querer ou não – o ato falho eu deixo para Freud explicar – levei embora a chave do quarto, como seu eu tivesse de voltar para reabri-la, como se eu não quisesse deixar a companhia daquela areia fofa e amarela, daquela água tíbia e distensa do Morro do Careca sob uma brisa sutil. Guardei o cartão 35 até que voltasse ao RN. No retorno, já de mudança definitiva, fiz questão de devolver aquele cartão no balcão da pousada, para a perplexidade da gentil atendente.
Voltando à Barbara, ela não apareceu apenas na morte noticiada. Preparar provas didáticas para um concurso na área de História do Teatro sem passar por Shakespeare e pelo que ela escreveu é difícil. Além dos livros dela sobre a cama do quarto de pousada, a autora espocava em falas e ideias da minha memória. Barbara conhecia o autor de Hamlet como ninguém neste país, traduziu quase toda a obra do bardo. Aliás, de teatro clássico sabia como poucos. Ainda era de uma geração que lia e, numa época em que orelha de livro e uma palestra de Leandro Karnal bastam para muita gente, era justamente isso que incomodava seus detratores. Claro que grande parte da antipatia por ela talvez se devesse a seu trabalho como crítica de teatro. Ouvi muito ser tachada de conservadora. Mas como alguém que traduziu Beckett, elogiou espetáculos de Gerald Thomas e textos de Heiner Müller pode ser conservadora?
É comum ser odiado pela classe, ou parte dela, quando se exerce a função da crítica em jornais, o que ela fez por 60 anos! Admirava-a, mesmo quando discordava. Para quem se formou no teatro na década de 1940, de uma geração que entendia a cena como expressão da literatura dramática, ainda muito ligada à palavra preparada e a uma mão forte de diretor, considero normal que ela não tenha alcançado outras poéticas. A despeito dessa lacuna de leitura, suas críticas às montagens contemporâneas, às vezes, tinham razão de ser.
Tive dois amigos que foram seus alunos na UNIRIO, onde foi professora emérita, e lembravam com gratidão de suas aulas. Me lembro de quando esbarrei com ela na Bienal Brasil 500, em 2000, no pavilhão do Ibirapuera. Cruzava um imenso “jardim” com flores de papel crepom permeadas por esculturas, numa gigantesca instalação de Bia Lessa em homenagem ao Barroco e no meio daquela profusão de cores vejo o movimentar elegante de uma cabeleira branca, alta. No meio do pavilhão, como um adolescente impotente em esconder seu entusiasmo diante de um ídolo de rock, desenfreadamente gritei: “Barbara!”. Não imaginei que o ambiente tivesse eco, minha voz ressoou, morri de vergonha. Simpática, carregando uma bolsinha de alça no antebraço, como uma rainha, ela acenou com um sorriso, tal se me conhecesse sem se lembrar de onde. 15 anos depois, triste, vi seu enterro pelo monitor da tv enquanto pensava no aprendido de seus livros, e o mar de Ponta Negra a bater na janela da pousada, me trazendo para Natal.

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