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Do olhar dos meus avós e outras lembranças

Uma das lembranças recorrentes que tenho do meu avô era de um hábito quase diário que ele tinha. No início de muitas noites, depois de tomado um banho frio no fim da tarde e um café quente logo em seguida, ele saía pelo portão e sentava-se no banco da praça, em frente à sua casa.

A casa dos meus avós fica no entorno de uma praça, bem de frente a ela, na verdade, ao lado de outras casas idênticas, cujas fachadas foram mudando ao longo dos anos. A praça tem dois campos de areia, onde, por muitos anos, os vizinhos jogaram futebol (principalmente à noite, começando por volta das oito). Tem alguns escorregos também, e um espaço com amarelinha desenhada no chão. E ao redor de toda a praça, bancos de pedra com assentos de cimento.

Meu avô saía pelo portão e sentava-se no banco que fica exatamente em frente à sua casa. E ali ele conseguia ficar uma hora ou duas, vendo passar: as pessoas, os cachorros, as horas, as visitas que entravam e saíam. Era comum eu chegar para a visita na noite de domingo e encontrar meu avô sentado no banco, a perna cruzada, as mãos entrelaçadas sobre o joelho, olhando para tudo e para nada. Pensando. Curtindo. Observando. Eu ia ficar com ele antes de entrar em casa. Mas eu não olhava pra muita coisa não. Eu entrava e ele que ficava mais tempo, ainda, sentado no banco e olhando para a rua, para as pessoas, para a casa dele.

A casa dos meus avós por muito tempo teve muro de tamanho médio, portão de grades amplas, e uma área da frente cujas portas sempre ficavam abertas. Dava para ver tudo que acontecia lá dentro, mesmo do lado de fora. Acho que por isso meu avô conseguia ficar tanto tempo ali, de frente para a casa. Devia ser como assistir a uma televisão. E mesmo quando a violência na cidade fez a sugestão para todos nós subirmos nossos muros, vovô deixou uma fresta larga em toda a fachada da casa: o portão tem frestas largas na altura do nosso rosto e pescoço, para que qualquer pessoa que se aproxime da casa possa ser vista (e possa nos ver – faca de dois gumes); e o muro conservou esse mesmo desenho, e como que continua as frestas do portão. Meu avô pôde continuar no banco da praça vendo a gente lá dentro. E a gente podia ficar dentro de casa olhando pra ele.

Minha vó conservou um costume que não sei se é muito antigo. E, sinceramente, sinto que forço a memória (e as ideias) agora para dizer que tenho quase certeza de que ela desenvolveu ou aprimorou isso depois que vovô morreu. Ela curtia ir até o portão, se escorar de leve, e ficar olhando a rua. Se pudesse ir deixar uma visita até o portão, essa era uma desculpa: depois de a visita ir embora, ela se demorava por ali, olhando a praça (hoje mais vazia e mais silenciosa), a calçada (hoje com menos pessoas e menos cachorros passeando), olhando o nada. Pensando. Observando.

Minha avó adorava a rua. Ir para a rua, olhar a rua, ver as pessoas, conhecer pessoas. Conversar e estar fora de casa. Estar em vários lugares e fazer várias coisas ao longo do dia. Eu achava que quando ela ia olhar a rua era algum saudosismo do tempo em que tinha mais disposição e menos medo de sair de casa. Era um hábito desenvolvido por alguém que ficava mais tempo em casa do que gostaria. Talvez também hábito de quem gosta de ver o tempo passar, e ia olhar para aquela praça como quem olha para o passado e a vida: as imagens mudando, o clima mais quente, as pessoas mais silenciosas, o ar de vizinhança ganhando um ar de insegurança.

Mas hoje, dias depois de ela também ter partido, para junto do meu avô, lembro-me dessas imagens e acho que elas dizem outra coisa. Não lembro muito de minha avó ir olhar a praça enquanto vovô era vivo. Mas lembro de como ela gostava de fazer isso nos anos seguintes à sua partida. Acho que ela olhava para o banco. Para a praça, e para as lembranças. Acho que ela usava as frestas do portão para assistir a essa televisão nostálgica. Como se eles estivessem ainda se olhando.

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