Décio é um amigo meu. Nunca tinha ido a Currais Novos. Apaixonado por Clarice, andou quilômetros de distância de ônibus, até o Seridó, para conhecer a família da nova namorada. Em mãos, tinha apenas o endereço da amada, anotado numa nesga de uma amarela folha rasgada. Foi há uns 15 anos…
Na busca pela residência, Décio foi perguntar atrás da matriz de Santana. “Apois, desce essa ladeira inté embaixo, vira a direita e cruza a esquerda, visse?” Simpático, além de explicar o logradouro, o velhinho puxou prosa, naquela educação que ainda guarda o interior do Brasil. Um pouco apressado, meu amigo Décio teve de se desculpar e despedir-se do transeunte. “Muito obrigado, senhor. Qual o seu nome?” “José”, disse o velho de bigode, levantando o chapéu. “José Bezerra, às ordens”.
No dia seguinte, já acomodado pela hospitalidade da casa da amada e depois de ter sido premiado com as lautas refeições que afamam a boa mesa seridoense, Décio foi levado a conhecer a escola onde Clarice lecionava. “Esta é a minha classe”, fez a moça, cabisbaixa, puxando os longos fios da trança preta, num gesto tímido que espera aprovação. E mostrou um grande retrato no final do corredor: “E este é o fundador da escola, José Bezerra Gomes”. “Puxa, foi ele quem fundou? Aí ele tá bem mais novo”, disse Décio. “E é?”. “Eu encontrei com ele ontem atrás da igreja”, respondeu o visitante. “Foi ele quem me explicou como chegar na tua casa”. Assustada, Clarice deu um passo para trás. “Não é possível, ômi! O seo Bezerra desencarnou em 1982.”. Atônito, Décio não acreditou. “Eu tenho certeza, amor, o homem que me deu a informação se chamava José Bezerra”. Ficaram em silêncio. Décio apoiou os braços no batente dos janelões e respirou a brisa que vinha do Monte do Cruzeiro, sem acreditar no que tinha acontecido.
Foram contar para os pais de Clarice. Seo Claodionor e dona Iaiá, que se conheceram no Centro Espírita Seara de Luz, há 40 anos, puseram-se em lágrimas. “Você é um felizardo, Décio. A pessoa certa para casar com minha filha. Foi o espírito do próprio Mestre quem se apresentou a você para dar nosso endereço”. Aos poucos, Décio foi descobrindo que não apenas os pais da sua pretendida eram espíritas, como grande parte da população local. O próprio José Bezerra, natural do município, tinha lá seus pendores mediúnicos. Sem querer, Décio tinha acertado em cheio.
E entre honrado e assustado, antes de partir, meu amigo foi tomar um café no bar, enquanto aguardava sua carona. Ouviu chamarem um funcionário: “Ô, Bezerra, traz um cafezinho aqui pro cabra!”. Perguntou o nome do balconista: “Zé Bezerra”. Depois, sentiu uma mão tocar seu ombro. “Olha, Décio, se você casar com a Clarice, me procure, porque eu faço os melhores arranjos para igreja!”, e entregou-lhe um cartão: José Bezerra – flores e cerimonial. Logo, um fusca parou na frente da bodega. “Oi, eu sou o primo da Clarice que vai te levar até a rodoviária. Prazer, José”. E ele: “De quê?”. “Bezerra Gomes”. Meu amigo começou a achar que metade de Currais Novos levava o nome desse espírito de luz, ilustre filho da cidade.
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Diretor teatral e professor do Departamento de Artes da UFRN. Falador e desembestado, adora Shakespeare, Cultura Popular e divagar sobre qualquer coisa entre o vento, o mar e as estrelas.