Choveu a noite toda e hoje não precisarei regar o jardim. A morte, às vezes, bate à minha porta. Na atual situação de guerra e pandemia, ela zanza pelas ruas da cidade e eu estou aqui. Piso meu quintal como quem pisa pela primeira vez nesta casa. Às vezes, é assim: deixamos nossa presença ser invadida pelo presente e nos surpreendemos com o cotidiano que a vista já nem presta atenção.
Descalço, piso a terra. Privilégio morar aqui. O que vim fazer no Rio Grande do Norte, a três mil quilômetros de onde nasci e vivia? Trabalhar apenas? Não, vim viver. Você se acostumou? me perguntam sempre, cá e acolá. Primeiro, não se trata disso: Natal te amarra, não deixa escolha: é paixão à primeira vista; exala sedução, te enfeitiça, como Veneza, Paris, Cádiz, Salvador. Então, o RN, para mim, foi mais do que sina, mas escolha. E sobre esse “se acostumar”… eu sempre me senti estrangeiro, fosse nas cidades do Estado de São Paulo, na Europa, ou aqui. A sensação de desterro e a de pertencimento levo uma em cada mala, aonde quer que eu vá.
Ajudou o meu repertório pregresso de interesses, claro. Já cheguei nordestino. O Nordeste sempre esteve na minha vida, nas escolhas profissionais que desde muito cedo fiz, somadas a outras para as quais fui levado: projetos de teatro, espetáculos, leituras, pesquisas acadêmicas sobre Cultura Popular Nordestina, viagens. Elas contribuem para que aqui eu tenha me encontrado.
“O território é antes de tudo lugar de passagem”, escreveram Deleuze e Guattari. E nessa chegança eu aprendi o vento, ou melhor, aprendi a ser vento. Eu nunca tinha reparado que para além do sopro na pele, o vento tem vários sons, tem cheiros e jeitos de ondular. “Eh! Ventos, ventos de Natal, me atravessando como seu eu fosse um véu. Sou véu”, escreveu um Mário de Andrade apaixonado, quando por aqui foi turista aprendiz. Sou véu e atravesso. Mais do que aliviar esse calorão, o irmão Vento (ou dona Iansã) me diz coisas, me põe a dançar.
No caçuá das magias se assentam as belezas de ver, as ruas largas e arborizadas, o Tirol, o Alecrim absoluto em sua vasta coleção de tudo oferecer. A verdadeira Natal subsiste lendo jornal num banco de praça da Cidade Alta, tomando café num bar de beco da Ribeira, num gato que adentra a casa de Câmara Cascudo, nos pés de buquê-de-noiva explodindo dos quintais. Depois de todos esses anos, acho que já posso chamar esta terra literalmente de terra-Natal.
Sinto a cidade é no seu umbigo, o forte dos Reis Magos. Da sua esplanada se assiste à força do tupi Potengi se agarrar com o mar! Inaugurada em 1599, gosto de pensar que aquela fortaleza foi erguida no ano em que Shakespeare provavelmente estava escrevendo Hamlet (a peça só estreou em 1600) e que, em seus bastiões, poderia vagar o próprio príncipe dinamarquês a esperar pelo fantasma de seu pai na boca da madrugada. Ou então, o guarda Marcelo, de sentinela, a comentar “Dizem que, ao chegar o Natal de Nosso Salvador, o galo, pássaro da alvorada, canta a noite toda: e aí, se diz, nenhum espírito ousa sair do túmulo. As noites são saudáveis, os planetas se acalmam, nenhuma feiticeira enfeitiça. Como esse tempo é feliz e cheio de graça!” – numa das mais belas descrições do Natal.
Natal das dunas sensuais, da rua mais bonita do Brasil – a Via Costeira, descortinando o turquesa mar. Natal do azul e branco pastoril de dona Maria Helena, na Vila de Ponta Negra, de suas rendeiras, dos congos de Pedro Correia, do coco de mestre Severino, do Boi Pintadinho, das falas e mumunhas de mestre Raul do Mamulengo, do Boi de Reis de Bom Pastor… Com eles eu finco minha pisada, neles me posto, neles estou, e com eles seguirei… caminhando contra o vento.
Diretor teatral e professor do Departamento de Artes da UFRN. Falador e desembestado, adora Shakespeare, Cultura Popular e divagar sobre qualquer coisa entre o vento, o mar e as estrelas.