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[CRÔNICA] O monge brincante

Teatro de João Redondo é como se chamava o Teatro de Bonecos Popular do Nordeste aqui no Rio Grande do Norte. Hoje quase todo mundo diz Mamulengo. São várias histórias, mais ou menos fixas, mais adultas do que infantis, transmitidas há gerações e costuradas à improvisação dos bonequeiros nas apresentações em praças. Um dos tantos motivos para a minha vinda para o RN – entre os quais sempre eu ter me sentido um nordestino fora do Nordeste, é a minha paixão por essa arte. Sou pesquisador da comédia popular no Teatro de Mamulengo.
E logo que aqui cheguei, fui apresentado por minha amiga Graça Cavalcanti ao mestre Emanuel Amaral. De algodão nos cabelos cobertos por um chapeuzinho de sambista, semblante sereno, boca risonha e acesos olhos de biloca, Emanuel parecia um desenho de quadrinhos. Na verdade, essa foi uma de suas profissões. Pioneiro na militância das HQs potiguares, foi fundador do Grupo de Pesquisas e Estudos em Histórias em Quadrinhos, Grupehq, em 1971. Em paralelo a sua carreira como jornalista, professor, pintor, escritor, folclorista, publicou vários livros de HQ e editou revistas, além de ter sido chargista da Tribuna do Norte.
Homem espiritualizado e conselheiro da União do Vegetal, era muito gostoso ouvir mestre Emanuel contar suas histórias, pois sua voz, ao contrário da maioria dos mamulengueiros, de entonação bravia, era baixa e suave como a de um monge, tão diversa daquela que emprestava a seus bonecos engraçados dentro da tolda. Tendo iniciado na arte do João Redondo aos 36 anos, fazia parte dos brincantes de iniciação tardia e que tiveram sua aprendizagem mais a partir da observação de outros (Chico Daniel era seu ídolo) e de pesquisas e leituras do que da tutela de um mestre.
Talentoso artista plástico, emprestava sua perícia na definição de traços marcantes – herança da caricatura – à escultura de seus bonecos. Emanuel construía a cabeça de seus fantoches a partir de cabaças vegetais ou materiais reciclados, como copinhos de iogurte, garrafas pet e tampinhas plásticas. Essa destreza transformou-o, nos últimos anos, em oficineiro. Tive o privilégio de convidá-lo a participar, em 2017, ao lado da professora Laís Guaraldo, do projeto de extensão Escola de Mamulengo, no Departamento de Artes da UFRN. Com seu jeito calmo e paciente, ele foi o mestre a conduzir a nós e a um grupo de 12 alunos, de Teatro e Artes Visuais, na modelagem de um elenco de mamulengos. O grupo acabou depois juntando-se ao projeto Mamulengando – Teatro de Bonecos da UFRN do Museu Câmara Cascudo e resultou no espetáculo As Bravatas de Baltazar nas Terras de João Redondo.
Em 2017, foi premiado como mestre da tradição pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), elencado no tombamento do Boneco Popular entre os grandes brincantes do Rio Grande do Norte. Mestre Emanuel, Deus conosco em hebraico, nome que recebeu por ter nascido no dia 25 de dezembro e na cidade do Natal, nos deixou no final do ano passado, pouco antes de seu aniversário. Aqui fará falta, mas já deve estar botando boneco para algum anjinho, junto com São Francisco, outro menestrel.

Foto: André Carrico

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