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[CRÔNICA] Abaixo a felicidade!

Parece que Bismarck, um dos mais importantes estadistas alemães, dizia ao acordar: “Odiei a noite toda”. Ao contrário, todas as vezes em que eu abro redes sociais, sinto como se folheasse um catálogo do Paraíso. Tudo ali é belo, limpo, as pessoas são amáveis, boas, puras, cheias de boas intenções ou então aparecem sempre se divertindo intensamente, rindo, curtindo a vida como se fosse um piquenique inesgotável.

Eu sei que a vida é boa, pulsante, maravilhosamente sublime, que vale a pena; e que a alegria é a “única indizível emoção”, como diria o Vinícius. Mas o que eu não concordo é com esse conceito de felicidade. Talvez porque a palavra já tenha se desgastado, não sei, mas acontece que essa ideia de que tudo tem que estar sempre alegre me nauseia.

Penso, por exemplo, no sorriso com que posamos para as fotos desde que me entendo por gente. No Instagram, geralmente, os rostos sorriem. Nas fotos antigas, mesmo em momentos de festas e gozo, as pessoas estão sérias, não a mostrar os dentes. Até meados do século passado talvez havia uma dignidade em tirar uma foto, o que permitia ao fotógrafo – como ao bom pintor de retratos – registrar a essência das pessoas pelo olhar. Não era preciso escancarar a alegria, nem ostentar uma feição forçada. Feliz já se estava e isso bastava; a foto era para abastecer a memória daquele momento.

As fotos hoje e, mais ainda, pelas redes sociais, me parecem que têm a intenção de mostrar para o mundo como eu sou muito feliz, como a vida vale muuuito a pena, como eu sou maravilhoso… mesmo que alcancemos meio milhão de mortos por uma pandemia, num país em que 116 milhões de pessoas passam fome, 33 milhões não têm teto, mulheres, negros, indígenas e homossexuais são mortos e espancados, a democracia tropeça, a necropolítica viceja. Como diria a cantora Marina, num texto em que diz a que veio, “por que sempre essa cara alegre se tem tanta dor por trás”?

É claro que só ficar chorando não resolve nada, que a alegria é a prova dos nove e que não tem nada melhor do que viajar, tomar vinho, comer bem, dançar a vida ou dar um gargalhada de verdade. Mas o que incomoda é a dimensão de marketing que a ideia de felicidade ganhou. Precisamos consumir para estarmos felizes e os produtos nas vitrines digitais ou físicas nos prometem essa felicidade. Há uma ditadura da felicidade a impor essa animação frenética, uma religião do regozijo que condena por heresia quem questione seus dogmas. Prefiro perseguir aquilo que Joseph Campbell chama de bem-aventurança, vida interior.

Eu quero recuperar as sombras das fotografias em preto-e-branco, o cão lambendo a cara do homem na sarjeta, num filme do Frank Capra. Não quero ser feliz, eu quero é mergulhar até o fundo, viver em plenitude.

 

Foto: Nilotpal Kalita (Unsplash)

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