Quem define os Brasis, afinal?, perguntou meu amigo Zé, vertendo o copo de cerveja com a delicadeza de quem beija uma namorada na boca, numa noite de minguante lua no Beco da Lama. Na música, por exemplo, em relação aos instrumentos musicais, qual seria “genuinamente” nacional?, acrescentou. Apenas os de origem indígena, penso eu, como as flautas, chocalhos e zumbidores, foi minha resposta. Pois, se pegarmos, por exemplo, os três vértices do samba: o pandeiro, veio com os árabes; o cavaquinho, é a braguinha portuguesa, oriunda da Ilha da Madeira, e o violão, como todo mundo sabe, é espanhol.
Esse papo sobre brasilidade tomou a nossa noite até as garrafas secarem. Papo antigo, que sempre me interessou. Uma espécie de revolta contra a ordem do mundo que, incompetente pra revirar, a gente disfarça tentando ler o próprio país. O conceito de nacional, tão problemático quanto relevante, longe de ter um caráter essencialista, é uma construção; depende do lugar de fala de quem conceitua e de seu contexto histórico. Mário de Andrade e Luís da Câmara Cascudo – que morava bem perto daquele beco de onde proseávamos, eu e o Zé, foram amigos, como nós. E fizeram parte de uma geração que, fuçando nas nossas matrizes nativas e lançando sobre elas novo olhar, buscou realizar um Brasil. Na hora, me veio à memória o belo espetáculo levado pelo Grupo de Dança da UFRN (GDUFRN), (Des)caminhos. É essa prosa, esse encontro-desencontro de um paulista e um potiguar, debruçados sobre brasis e misturas várias, que o espetáculo conta em forma de dança.
Apresentado em 2019 na Escola de Música e atualmente, de modo virtual, em cartaz no YouTube, na mostra SBPC Cultural, (Des)caminhos movimenta as contradições e belezas que constituem a busca por uma pretensa identidade nacional. Baseado na troca de cartas e de ideias entre Cascudo e Mário, o coletivo de dança apresenta o Rio Grande do Norte em sabores, sons, paisagens, loas e pisadas. A rapsódia de ritmos desfia suas feiras e seus fados, canções, causos, pregões, parlendas, experiências afetivas, gustativas, olfativas, auditivas. Entre registros fonográficos e fotográficos, tudo caminha num crescendo, até o clímax da visita de Mário de Andrade ao cantador de coco Chico Antônio, na Fazenda Bom Jardim, em Goianinha, na segunda expedição do poeta paulista, resultante do livro O Turista Aprendiz. O encontro com o coquista lhe valeu seu maior alumbramento: “E quando tomado pela exaltação musical, o que canta em pleno sonho, não se sabe mais se é música, se é esporte, se heroísmo”. Mário se apaixonou pela música de Chico, “relumeando numa luz que não era do mundo mais”.
Tudo isso está em (Des)caminhos. Perpassa ainda o espetáculo a alma de um escritor doído de saudade ao se ver obrigado a deixar os ventos riograndenses. Mas nem por isso é nostálgico: a saudade da Natal de outrora é costurada pela música pop, pela moda praia, por biquínis e óculos de sol, pelas potentes instalações visuais contemporâneas de Regina Johas, trabalhadas sobre fotos da Fazenda Bom Jardim… pelo olhar atual da geração de dançarinos jovens, que participaram do processo de criação colaborativo desenvolvido pela diretora Teodora Alves. É bonito acompanhar a generosidade dessa dançarina-pesquisadora-diretora que não verticaliza, mas reparte seu ato criativo com o corpo de baile. Na gira dos bailarinos rege a vibração da coreógrafa, mas dançam também as ideias de cada atuante. Ao desenharem um país sonhado por um paulista e um potiguar, mostram em seus corpos as dúvidas e hipóteses desses pioneiros que ousaram sonhar um país. Na verdade, o Brasil é o que a gente inventa dele!, fechou a resenha meu amigo Zé.
Diretor teatral e professor do Departamento de Artes da UFRN. Falador e desembestado, adora Shakespeare, Cultura Popular e divagar sobre qualquer coisa entre o vento, o mar e as estrelas.