Cabelo curto, de um crespo castanho pintado, ombros largos, voz de soprano, severas sobrancelhas de escorpiana a minha mãe. Fogo é o elemento que melhor a traduz. Esperta como a chama, a vida toda veio a queimar, feito uma lâmpada de querosene, permanente, inarredável. Lourdes, nome de Nossa Senhora, sua guia e protetora, pendurada entre seus peitos, enfiada na carteira no meio das fotos dos filhos e da filha. Luly, só para os íntimos, como sua avó paterna a chamava desde a infância, num cortiço apertado e humilde no bairro do Ipiranga, com quem aprendeu o espanhol antes mesmo de escrever. E na improvisada cozinha escura, ao pé do fogão à lenha, entre o fumo das vasilhas de feijão branco, morcillas, alho e azeite, legou o que seria a profissão que por susto Luly teve de assumir após a viuvez: professora de culinária.
Sim, tal qual uma Dona Flor de Valinhos (só que sem nenhum marido), a pequena Luly da abuela Madalena teve de se reinventar aos 48 anos e sair ensinando quitutes para sobreviver e sustentar seu filho adolescente. A partir dali, viu-se livre, renasceu. Seus cursos correram Estado, com seu bom humor e simpatia deu aulas para donas-de-casa em supermercados do interior paulista, dirigindo, ela mesma, seu chevetinho abarrotado de batedeiras, panelas, ingredientes e garfinhos plásticos da Sadia. Produziu receitas e até publicou um livro.
Assim, com ela, aprendi a me virar na cozinha: arroz, feijão, macarrão, refogar carne moída, uma ou outra mistura básica. Precisa mais? E vendo-a cozer e a cumprir seu passeio favorito – ir ao supermercado, aprendi também a economizar. Pesquisar na prateleira de baixo para cima. “Conte o dinheiro, compare, nunca confie”. Assalariado que não ganha muito, aprende a manobrar o pouco e ainda a tirar pequenos luxos. O olhar crítico sobre as mercadorias é a mesma mirada para o mundo; herança, aliás, necessária ao rascunho de artista e acadêmico que tenho tentado ser.
Devo-lhe também a garra de lutar, persistir, saber que de limonada em limonada é que se tempera a vida. E aí o legado de uma outra fogueira, a mãe dela, minha vó Nair, baixinha, peituda, desaforada, caipira na gramática, bisneta de indígena, dizia; mascava fumo e curava quebranto como ninguém. Comigo, sempre doce. Como ela, minha mãe foi levada pela ambição de perseguir algo melhor a nos dar. É olhando para frente que sobrevivem as da sina de Cassandra, a irresistível vontade de praticar justiça soprando a verdade, fervida… como uma salamandra a regenerar os membros amputados. Eu começo onde termina o rastro dela.
Minha mãe está fazendo oitenta. Não fosse pela beleza do oito que desenha o infinito, diria que a minha mãe não combina com o peso desse numeral. Ela continua com a mesma agilidade no andar curto e ligeiro, sagacidade no raciocínio, acompanhando e comentando as últimas notícias e resumindo de cabeça, em detalhes, histórias que vão de musicais da Metro vistos na sua adolescência nas matinês de cinema até à última temporada de A Máfia dos Tigres.
Nessa data, nenhum presente, por maior ou mais caro, paga o seu sacrifício. Aquela xícara de capim santo para minhas cólicas, a simpatia de índia para baixar a febre, ela tirando do Silvio Santos só para eu ver Trapalhões, costurando minhas fantasias de carnaval, as rabanadas no Natal, o perfume de açafrão fumegando da paellera… Há que se passar a vida pagando a dívida do seu ventre. E esta crônica sem perna não cancela o meu débito, nem alcança o amor maior que lhe tenho.
Diretor teatral e professor do Departamento de Artes da UFRN. Falador e desembestado, adora Shakespeare, Cultura Popular e divagar sobre qualquer coisa entre o vento, o mar e as estrelas.