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[Crônica] 24h

Há dentro dessa mulher que vos fala dois homens: um menino prodígio e um velho ranzinza. O primeiro acorda todo dia às 9 pra assistir Cartoon e terminar a tarefa de matemática tomando Toddynho, enquanto o velho mal humorado e calejado da vida, varre a casa e se senta cansado na cadeira de balanço pra falar mal da bolsa de valores e do IBOVESPA e do seu amigo Arlindo, que desmarcou a partida de xadrez na pracinha.

O menino prodígio corre no terraço pra mostrar pro velho o dever cumprido, ao passo que o velho resmunga a irrelevância de se saber a fórmula de Bhaskara.

“Todo conhecimento é válido…”, grita da cozinha de si mesma essa mulher.

 A mulher vive a vida abrigando os dois enquanto prepara macarrão com salsicha pro almoço. Nada é tão ordinário quanto macarrão com salsicha pro almoço. Na verdade, pro almoço, nenhum dos três nunca precisou de muita coisa – requintada ou requentada – além do macarrão com salsicha, e nisso concordavam plenamente enquanto almoçavam.

 Há um momento do dia, ali pelo fim da tarde, onde os três param o que estão fazendo pra assistir ao pôr-do-sol: O velho desliga a TV ligada no “Casos de Família”, o menino solta os carrinhos Hotwheels e a mulher esquece o grande amor. “Quantos mais desses eu vou ter?”, eles pensam em uníssono.

 O futuro é aterrorizante pra quem precisa ser vários. As ondas do futuro que quebram na praia da nossa existência, sempre parecem tsunamis durante um pôr-do-sol laranja como esse. Ninguém é o mesmo depois de um pôr-do-so, nem uma crônica água-com-açúcar como essa resiste à força descomunal dum pôr-do-sol laranja como esse.

 Chegada a noite, ambos se recolhem dentro da mulher numa sacada ventilada próxima ao coração. Um copo de leite e um punhado de esperança se escoram na cabeceira, mas nenhum dos dois cochila: só descansam um pouco pra ajudá-la a realizar os sonhos que nunca dormem.

 E aí começa tudo de novo: o dia, a correria, a falta de sono… Mais 24 horas de agonia boa.

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