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Opinião: O retorno de Gossip Girl, o caso Lucas Santos e o poder das redes sociais

Quando foi anunciado o retorno de Gossip Girl – a série que fez um sucesso colossal entre os anos de 2007 e 2012, com 121 episódios, muitas reviravoltas e problemas – automaticamente nos fizemos perguntas relevantes. Ainda é possível que uma que série que acompanha jovens ricos de Nova Iorque, embebidos em dramas superficiais, com tramas excludentes costuradas por desmedida futilidade e um cyberbullying romantizado, tenha espaço nos tempos atuais? Ao que parece, para a plataforma de streaming HBO Max e o showrunner Joshua Safran (responsável pelas duas versões) ainda existe, e muito. Mas, sem rodeios, já dando spoilers desse texto, o mundo mudou muito para receber uma produção que é mais do mesmo e essa opinião será calcada em questionamentos a respeito disso.

O problema dessa continuação da série Gossip Girl é já nascer datada. Em tempos onde nós mesmos nos expomos em níveis preocupantes nas redes sociais e enfrentamos as dores e as delícias desses hábitos, assistir a conhecida trama onde uma pessoa (ou um grupo de pessoas) persegue, expõe e aterroriza uma pessoa (ou um grupo de pessoas), parece algo comum demais para ser usado como base de uma série que precisa do fator “extraordinário” para acontecer. Quando conhecemos a primeira versão do Joshua Safran o mundo ainda não era esse e a internet dava seus primeiros passos, ou seja, ainda não estávamos demasiadamente habituados e prontos para problematizar tudo isso. Passados quase 10 anos do fim da primeira versão, já podemos dizer o total oposto.

E, ainda que mudanças no mundo tenham ditado melhorias na série – a exemplo do fator representatividade no elenco e nas pautas – tudo soa superficial demais para ser assistido com alguma espécie de seriedade. A escolha de um elenco negro, de personagens LGBTQIA+ e de uma atriz transexual para a produção parecem apenas estratégias para atenuar imperfeições graves na concepção da trama. Não temos como minimizar o problema homérico de ver adolescentes tendo que lidar com a crueldade cibernética e questões pessoais profundas sendo disseminadas na rede, muito menos isso ser retratado como algo desejável.

Paro agora em autorreflexão para tentar perceber se toda a minha problematização da série se deve ao fator idade. Claro que no auge dos meus 34 anos, alcançar um lugar de identificação com adolescentes é um obstáculo, mas acredito que existam lugares nessa trama que são realmente incabíveis de se tolerar, independente de idade, tempo ou identificação. Na Gossip Girl de 2021, os professores da renomada escola Constance são os responsáveis por manter o perfil na internet que cria as fofocas sobre os alunos, se por si só isso já não é problema suficiente, um dos integrantes do time de gossips, um professor, homem e adulto, fotografa uma adolescente se despindo, com uma personagem de 14 anos; isso é exposto na internet. Como é possível que os produtores, a direção e a própria HBO Max não percebam que algo criminoso passa de forma naturalizada numa trama?

É inevitável que hoje, terminado os seis episódios da primeira parte da série, eu não traga à tona nesse texto o suicídio de Lucas Santos, adolescente de 16 anos, filho da consagrada cantora de forró Walkyria Santos, que não conseguiu lidar sozinho com o hate e a perseguição numa rede social após postar um vídeo em que simulava um momento de romance com um amigo. Ele sucumbiu aos ataques homofóbicos na internet e tirou a própria vida. Lucas Santos é uma vítima fatal de algo que uma série populariza, romantiza e não discute de maneira responsável e profunda, algo errado em níveis inimagináveis.

A Intel Security, empresa vinculada ao setor de segurança ao usuário da fabricante de computadores Intel Inside, realizou uma pesquisa sobre o cyberbullying no Brasil. Os pesquisadores colheram dados com 507 crianças e adolescentes com idades entre 8 e 16 anos, buscando informações acerca do bullying praticado em ambientes virtuais. Estes foram os principais dados levantados sobre os entrevistados: 66% presenciaram casos de agressão na internet; 21% afirmam ter sofrido cyberbullying. Dados alarmantes para um mundo globalizado.

Para além de todos os problemas nas esferas sociais, Gossip Girl erra na sua própria concepção. O roteiro revisita algo, que arrisco a dizer, ninguém quer mais assistir. Ver gente rica vivendo tudo que é – para a grande maioria da população mundial – inatingível. Isso poderia até funcionar se o roteiro fosse bem trabalho, atualizado e concebido. Mas, não acontece, não há identificação ou projeção, básico em qualquer boa história. O superficial demais para 2021, fica ainda mais evidente por ser miseravelmente dirigido e ter um elenco que, apesar de diverso, não sustenta nada em carisma e talento.

Gossip Girl tenta ser moderno, vanguardista e icônico. Mas, amarga miseravelmente em um lugar ultrapassado, irresponsável e démodé.

*Se você está passando ou conhece alguém que está passando por problemas emocionais e considerando o suicídio ligue para o CVV (Centro de Valorização da Vida), 188, para receber suporte. O atendimento é gratuito, sigiloso e funciona 24h.

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