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[CRÔNICA] Hoje nunca mais

Voltar pra casa era como entrar pra fora. Ele girava a maçaneta e o céu desabava dentro da mansão em que viviam os dois. Só os dois. Aquela casa imensa que já foi motivo de tanta alegria pra ambos hoje era apertada como um kitnet nas zonas mais marginais da cidade.

Ernesto e Bento nem se olhavam mais. As feições eram sempre muito fechadas, o semblante era incômodo, pareciam sufocados por alguma fumaça.

Há quanto tempo estavam juntos? Uns 20 anos? 5 anos? A vida toda? Uma noite só? Faziam vista grossa pros pelos alvos que preenchiam o cavanhaque, o bigodinho falho, o sovaco. Fazia muito tempo.

Tanta água já havia rolado por debaixo da ponte que construíram que era difícil admitir que ali, naquele ponto, eles não convergiam mais pro mesmo canto.

Ernesto tinha muito claro em sua mente que desatar o nó de um enlaço tão antigo era como assinar na própria cara e com o próprio sangue o atestado de fracasso. Morrer só nunca foi uma opção.

Velho também sente tesão, Ernesto. Bento dizia toda noite quando se chateava com a negação do fogo. Velho sente tesão e mesmo que não sentisse, eu não nasci velho, eu lhe tive a vida toda, Ernesto. Ernesto calava sempre que podia e quando não podia, só consentia. Vivia num estado constante de “não estou sentindo nada”.

A boca só fala do que o coração tá cheio e naquela altura do campeonato era impossível silenciar tudo o que calaram.

Pra onde ir quando você não se enxerga mais no fundo dos olhos do seu amor? Era disso que Ernesto tinha medo. Pra onde ir quando todos os trens já partiram, quando não há mais voo a ser alçado, pra onde ir, pelo amor de Deus, quando você nem sente vontade de estar?

Bento calou qualquer tristeza aparente. As palavras batiam no seu peito como onda em mar revolto e ele encarava o temporal apático. Não tinha mais vontade de apreciar aquele azul. Mastigou o seu silêncio com cuscuz e ovo e um punhado de relaxante muscular no jantar. Empurrou pra baixo com café.

Ernesto comprou uma cafeteira nova, era magenta vibrante e destoava na decoração da casa. Não fazia sentido. Aquela densidade toda que. Esse drama tão intenso que. Ele sempre odiou drama, ele sempre. Quando. E. Tu. Bento? Bento, tá meu ouvindo?

Acendeu um Malboro Vermelho depois de sei-lá-quanto-tempo, ouviu a voz da Palmirinha ensinando na TV a receita de um Creme Brulée caseiro em algum dos milhares de cômodos e fez companhia pro corpo frio de Bento no chão da cozinha. Fazia tempo que não o via tão tranquilo. Exalava um cheiro forte de colônia pós-barba.

As coisas eram como tinham que ser. Amanhã ele resolvia o que tinha pra resolver. Hoje não. Hoje nunca mais.

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