Início » Artigo: Em que momento parar de dançar essa valsa?

Artigo: Em que momento parar de dançar essa valsa?

Nesta semana assisti ao fantástico filme da atriz e diretora Sarah Polley, lançado em 2011, pela Califórnia Filmes, o filme “Entre amor e a paixão”, protagonizado pela ex-Marilyn Monroe e premiada atriz Michelle Williams e o ator de comédias Seth Rogen. Uma obra profunda que levanta questões sobre a verdadeira essência da felicidade e dos desejos humanos.

Esse drama/romance propõe algumas perguntas que podemos julgar desgastadas, mas que estarão, vez ou outra, assombrando nossas vidas: Vale a pena largar um casamento sólido, em que existe amor, por conta de uma paixão arrebatadora? É possível se apaixonar por uma pessoa e não deixar de amar o seu parceiro? Amor é suficiente?

Margot era muito bem casada com Lou. Os dois moravam em uma casa aconchegante, eram carinhosos um com o outro, se amavam, mas não tinham química alguma. Essa lacuna de paixão na vida de Margot fora preenchida quando ela conheceu, inusitadamente, Daniel. E é exatamente ai que a vida vazia da mulher passa a fazer mais sentido para ela, ao mesmo tempo é onde começa ‘a valsa’ de Margot entre vários sentimentos. Entre o amor e a Paixão tem título original ‘Take This Waltz’ – que em tradução resulta em “Aceite Essa Valsa”, o que tem muito mais sentido do que a tradução escolhida para o filme.

O título em português entrega o filme de maneira óbvia e de alguma forma o deturpa. Margot ultrapassa a dúvida entre a escolha do amor ou da paixão; ela não está dividida entre essas duas coisas. Mas, ela é a personificação desses sentimentos e se encontra aprisionada em um lugar angustiante e repleto de medo. De um lado, um relacionamento seguro de quase 5 anos. Do outro, um sentimento novo que surge despretensiosamente e que aos poucos, se configura como algo necessário. Sem o qual a vida não terá a menor graça e sentido. E é nesse abismo sentimental que Margot se encontra, se atira e se perde.

Não é um romance água com açúcar. É um filme de dúvidas. De escolhas. De dor. De muita dor. Porque esse vazio que é a causa do desejo pelo prazer e das escolhas que se interligam aos sentimentos é comum a todos nós, não apenas à protagonista. Ela se sente tentada a largar o marido e viver uma grande paixão, regada de aventuras com um homem que ela sabia que tinha química, no entanto ela não queria deixar aquele que a ama incondicionalmente.

Apesar do filme tratar de um assunto já muito discutido ele consegue levar os pensamentos para outros patamares, para outras esferas, com questionamentos mais refinados. Ele nos sugere que uma vida vazia, ou uma pessoa que se sente vazia, tende a buscar emoções que nublem a realidade. E que isso é buscado sem o vislumbre de que os preenchimentos do nosso cotidiano serão sempre finitos. Que oscilamos levemente em uma vida, como numa valsa, em passos circulares, entre os vazios profundos e as alegrias altivas.

Existem algumas demandas humanas que regem o nosso caminhar e os nossos relacionamentos românticos/eróticos certamente figuram pelo topo delas. Ainda assim, essas demandas são mutáveis, quando jovens tendemos a nos sentir mais atraídos pela novidade, por uma constante alternância de estados, ávidos por conhecer e nos reconhecer, com a experiência tendemos a buscar mais a estabilidade, a segurança, acredito que isso se deve ao fato de adquirimos uma espécie de olhar sensível, aprendemos a reconhecer os pequenos prazeres do dia-a-dia, dos gestos, das delicadas virtudes, é o momento em que percebemos claramente e iluminadamente as vicissitudes da vida. Ainda assim, há no inconsciente coletivo, pairando sob nossas cabeças, um incentivo pela busca por prazer, por desejos; o mundo promove hoje como um bem precioso e comum àqueles que são “melhores” ou mais “virtuosos”. Prazer e desejo como produtos máximos a serem adquiridos no caminho da felicidade.

Sarah Polley é brilhante em ilustrar todas essas questões no filme. Algumas cenas, de tão corriqueiras e alegóricas da temática, chegam a causar angustias lancinantes. Onde a culpa sempre aparece vinculada a nossa capacidade de tornar um desejo real. Uma dessas cenas é quando o personagem de Luke Kirby, David, descreve como seria seu primeiro momento erótico com Margot, como ele desejaria que fosse o primeiro contato sexual. Um enumerado de predicados lascivos romantizados, animalescos e quase inatingíveis. Mostrando que, muitas vezes, o nosso desejo não poderá ser saciado quando confrontado pela realidade. Que no plano mental tudo acontece em outro ritmo, em outra frequência. A idealização se contrapondo a verdade. Uma cena que é cortada pela Margot partilhando de um momento intimo, dividindo o banheiro com o seu marido. A intimidade escancarada e desestimulante do casamento. Mas, uma das maiores qualidades do filme como objeto para construção desses questionamentos reside na condição não partidária, em diversos momentos as qualidades do casamento e do cotidiano são evidenciadas, como nas deliciosas cenas matinais do casal, as trocas de caricias, o companheirismo.

O filme me levou a um lugar que já havia visitado quando estive nas páginas do livro “Variações sobre o prazer”, do Rubem Alves, onde o autor faz um levantamento sublime sobre prazer, desejo e felicidade, construindo e desconstruindo os mitos que os cercam. Nem sempre seremos felizes quando nos rendemos a um desejo, a um prazer. As vezes, é no prazer e no desejo que reside a angustia e o confronto do que é real. Porque o prazer só acontece se o corpo tiver posse do seu objeto de desejo. O prazer do sorvete só existe se houver um sorvete a ser apreciado. O prazer do beijo só existe se houver a pessoa amada a ser beijada. Mas, o prazer se farta logo. Quantos sorvetes sou capaz de tomar antes que ele se torne de objeto de prazer em causa de sofrimento? O prazer tem vida curta. Segundo Rubem Alves, o evangelho do prazer reza: “Bem aventurados os que tem fome, porque serão fartos”. É então que um novo vazio virá.

Vivemos cercados por essas ilusões, viciados em preenchimento, porque há um sistema silencioso que nos amedronta com a ideia da não saciedade. Nossos desejos precisam ser saciados, não é permitido passar vontades. Nossos vazios precisam ser abarrotados por coisas e pessoas. Precisamos de emoções extremadas para que a felicidade se faça presente. Mas, a alegria não precisa de posse do objeto desejado para existir. A lembrança pode figurar aqui como a prova que um simples pensamento pode nos causar felicidade. Porque a alegria nunca se farta, e não está ligada ao desejo e ao prazer. Alegria é fome insaciável. Da alegria nunca se diz “Estou satisfeito!”, “Chega! “.

Nesse emaranhado de pensamentos me vem a cena mais interessante do filme – referente a alegria, prazer e vazios – onde, em um parque de diversões na qual vemos Margot e Daniel num carrinho rodando com fundo musical e com luzes coloridas, proporcionando todo um ar romântico a cena que é repentinamente quebrada quando o brinquedo para e todos esses apetrechos são desligados, nela vemos claramente demarcado o limite entre a fantasia e o caráter realista da situação. No brinquedo que se move velozmente por todos os lados, dando a impressão de que ela vai se chocar com as demais cadeiras, a música divertida, luzes de discoteca iluminando e o vento levantando os cabelos de Margot, fazem com que, naquele momento, nada mais pareça importar, só o vento chacoalhando tudo e levando os problemas para longe completamente entorpecidos. Mas, quando tudo passa, o brinquedo passa, a emoção se vai e Margot se lembra que o homem ao seu lado é apenas uma ilusão do desejo, e que ela estava perdidamente apaixonada por ele, mas que ela é casada com um homem bom e que realmente ama-a, a faz voltar ainda mais para o chão, com mais força.

No fim percebo que assim como Margot, estamos constantemente andando entre desejos e realidades, procurando por parques e emoções que completem nossos vazios. As vezes são amores, as vezes é trabalho, viagens, dinheiro, coisas que nos suspendam da realidade, que tragam o novo. Mas, existe outro fator preponderante nesta questão, o tempo, o que é novo hoje amanha envelhecerá.

Uma das personagens, certa hora do filme, diz a seguinte frase para Margot: ‘Você está buscando preencher seu vazio como uma tola.’ – Ali creio que resida a mensagem central do filme a nós. Na condição de seres humanos, sempre estaremos buscando ocupar os nossos espaços vazios como tolos. Totalmente despreparados para lidar com nossos desejos. E qual é a hora certa de aceitar essa valsa ou parar de dançar?!

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *